Éramos livres, por Wanete Carvalho

Meu pai dizia que quando começamos a lembrar e contar as coisas boas do passado é que já estamos velho e não percebemos. Diante dessa constatação, arrisco-me diante de tanta violência em que vivemos a ousadia de afirmar: fomos verdadeiramente livres!

Em todos os cantos dessa cidade, das áreas mais nobres até os bairros periféricos todos viveram tempos de caminhar livremente pelas ruas, frequentar as nossas praças, bares, restaurantes, cinemas de rua, clubes, praias sem o risco de uma bala perdida, um assalto, um sequestro, um arrastão. As nossas escolas eram só dominadas pelo respeito, companheirismo, brincadeiras e disciplina. As drogas a nós apresentadas era o pastel na porta do colégio cheio de óleo, o sonho com quase meio quilo de açúcar, o cachorro quente mais que requentado e a pipoca repleta de sal, no entanto, tínhamos tempo e onde correr sem riscos, suar para queimar aqueles inesquecíveis e saborosos exageros. O nosso bordão: “parou a bola”, grito vindo do primeiro integrante do baba que visse uma pessoa da terceira idade, uma pessoa com deficiência, uma senhora grávida ou qualquer um que nos merecesse o costumeiro respeito, foi infelizmente substituído pelos barulhos de troca de tiros, correria de homens maus armados com fuzis nos anunciando que a boca está sendo invadida e que a guerra continua. Estamos em guerra!

Para mim uma das piores coisas de uma guerra é a ausência de liberdade e o reconhecimento de que possa ser que não vivamos mais para termos de volta o peito aberto cortando vento e sem temor. Éramos simples e felizes. Livres, leves e soltos! Que droga todo esse progresso anunciado, que porcaria toda essa tecnologia que me tranca em casa, com medo das balas, das drogas zumbis, dos corpos cortados ao meio. Meu Deus, o que é isso!? Vemos corpos cortados ao meio jogados em latões de lixo. É o tio da barraquinha assaltado, o rapaz do Uber com uma bala no peito, o parente sem vida, a moça da loja agredida, facada no metrô, assalto no ônibus, saques no engarrafamento, crimes, crimes, muitos crimes diante dos olhares atordoados das autoridades perdidas, sem planos, só palavras para atenuar o escândalo do flagrante das suas irresponsabilidades. Se escondem apertando as gargantas dos que denunciam e pedem a liberdade de volta. Onde está o Estado? Perdendo a guerra, claro!

Eu quero a minha rua de volta, o meu bairro, a minha cidade, o bate papo com os meus amigos nas ruas, as noites dos casais de mãos dadas nas orlas e praças, eu quero pegar o meu “buzú” estação da Lapa sem tiros, a paz de volta no cabula, Pernambués, Massaranduba, Periperi, Plataforma, Valéria, Calabar, Pituba, Engenho Velho, eu quero andar sem medo na Graça e na Barra como eu andava antes. Me permitam viver de verdade, por favor! Poxa, me devolvam a paz que eu sentia em voltar as cidades do interior e amanhecer nas prosas as calçadas vendo as janelas entreabertas permitindo que entrasse o frescor da madrugada. Tá chato, moço, quero a minha igreja sem segurança na porta, sem medo de andar até o carro, sem medo do meu filho na escola. Ai que medo! O massacre, o traficante, a ameaça de bomba, a minha criança exposta a tudo, vendo tudo, sentindo tudo, sofrendo tudo calado desabafando inutilmente na tela do seu celular e nada posso fazer. Não, em verdade eu não sei o que fazer!

Os traumas, as sequelas de uma vida sufocada pelo medo, filhos tão novos, tão frágeis e eu aqui inerte. Eu não sei bem como lidar com essa novidade avassaladora, eu não vivi isso na minha época, pobres crianças vitimadas pela ganância do poder pelo poder. Vítimas desse Estado falido e pálido. Eles estão apenas tocando o que pode, fazendo o que dá pro gasto e repetindo vergonhosamente que está tudo sob controle. E eu inquieto me pergunto: está tudo sob controle? Ai a minha velha e corroída memória desgastada pelo estresse desse sofrimento diário me responde: não mesmo, meu caro homem livre do passado, você não tem mais controle sobre o seu livre direito de caminhar e viver em paz. Agora só te resta recordar, lamentar e contar suas histórias.

Wanete Carvalho
é escritor e historiador.

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